quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Mulheres brasileiras

A mulher loira e bem vestida está com a cara encostada no interfone do edifício. Conforme vou me aproximando percebo que a voz está um pouco alterada. “Você quer que eu tire uma foto?”, diz ela para o porteiro que a olha enfadonho de dentro de sua guarita de vidro. Quando estou passando por trás ela se volta para mim e pergunta “Você acha que não posso estacionar aqui? Acha que estou atrapalhando a entrada do edifício? Vou tirar uma foto para mostrar a ele”, termina apontando para o porteiro. É uma mulher já feita, lá pelos 40 anos, loira, corpo cheio e bem definido, bonita, vestida com calça e blusa beges de um tecido leve, delicado, algumas joias ou bijuterias, que combina com os cabelos soltos. Transparece ter tido berço, boa educação. Quer porque quer deixar seu carro ali, uma SUV preta, vidros escuros, grande, alta, espaçosa. Na rua não outra vaga. Ela se dirige para a traseira da SUV olhando nos meus olhos com raiva e apontando para o chão. A raiva dela não a deixa ver, mas boa parte da traseira da SUV está dentro da linha amarela que define o espaço de entrada e saída da garagem. “Você acha que está atrapalhando? Você acha que não dá para entrar e sair? Vou tirar uma foto”, repete irritada para mim. “Se fosse você, iria conseguir passar por ai? Iria conseguir manobrar o carro?”, respondo seguindo em frente para não dar trela. Percebo que ela para e olha para baixo em silêncio. Cruzo a rua e vejo a SUV saindo da vaga.
De imediato vi passar na minha testa um texto politicamente incorreto sobre o ocorrido. Voltei para casa, sentei na beira da cama, e como já estava com o computador fechado, anotei algumas coisas numa folha de papel. Lembrei de minha fase de sessões de terapia no ‘Café Belina’ do Shopping Iguatemi. Não havia nada melhor para mudar o humor. Começava pelo apelido do lugar, Café Belina, em homenagem àquela perua velha fabricada pela Ford, derivada do Corcel, aquele garanhão sobre rodas. Para ter terapia bastava pedir um café, sentar na mesa que dava de frente para quem subia pela escada rolante e se deliciar com os tipos, ou zoológico, como queira, que iam um a um subindo, surgindo e se mostrando ao mundo. Uma amiga muito divertida foi a criadora da terapia – grátis, diga-se de passagem. Fazia parte controlar riso ou gargalhada para não dar na cara e ofender. A diversão agora tem um gosto de ranço, principalmente no Shopping Iguatemi, que hoje, nestes dias de Brasil rico e desvairado, tem um perfil de casa de saúde mental suiça, com certeza a graça acabou. Antes acontecia de tudo, o zoológico era completo, todos tipos, gêneros, formas. Hoje é coisa fabricada, esnobação sem sentido, muito forçada, tipo BBB das ricas transmitida pela TV Bandeirantes. Não dá vontade sequer de ser politicamente incorreto porque é muito triste, sem graça, deprimente, verdadeiramente pobre, vulgar, medíocre. Mais que déjà vu.
Aquela mulher, que ao perceber seu erro enfiou o rabo entre as pernas e saiu de mansinho sem mais dizer. No final das contas faz parte das vítimas de todo azar de violências, das criminais às morais, que vivemos no nosso dia a dia. Neste contexto a SUV passa ser a salvação. Chora menos quem pode mais, esta é a regra, SUVs são imponentes no trânsito..., que delícia..., ver todos por cima... Quando vieram as primeiras vans para o Brasil Sarah se apressou para tirar carta profissional para pedir ao marido uma Besta, que ela considera até hoje “o melhor ‘carro’ que já tive”. “Você faz o que quiser no trânsito e todo mundo te respeita.”
Com a bicicleta não tem esta história, muito pelo contrário. O número de mulheres que usam a bicicleta no Brasil é baixo por uma série de razões, que vão desde a mesma questão cultural que faz da SUV o tanque de guerra para algumas, até o fato de até agora praticamente não haver dentro do mercado bicicleta própria para a altura média da mulher brasileira. O correto seria que os modelos básicos fossem tamanho 16 e não 19 fabricado, padrão para mulheres europeias.
Em 1982 pedalei muito com Cristina, uma menina alta, magra, muito bonita, e determinada, muito determinada. O tamanho padrão de bicicleta lhe serve perfeitamente. Na época o trânsito era infinitamente mais tranquilo, havia poucas mulheres dirigindo, mas também não era difícil ouvir alguém mandando uma motorista “voltar para casa e vai lavar roupa”. Cristina então sequer tinha idade para ter carta e só pedalava. Foi dela que ouvi as primeiras histórias sobre carros diminuindo a velocidade e passando a mão na bunda da ciclista. Acabei descobrindo que, tristemente, o fato era muito mais comum que se podia imaginar e que várias ciclistas acabavam no chão, machucadas. Isto em bairros de classe média. Mulher bonita, com bela bunda, pedalando completamente sossegada só acompanhada de seu homem.
A posição da mulher na sociedade mudou muito. O manual da boa mulher que existiu, com preceitos tão limitados e controladores, vai aos poucos ficando para trás. Conforme a mulher foi ganhando espaço e poderes, foi também deixando de lavar roupa para procurar sua identidade própria. O novo manual cria novas categorias:  patricinha, perua, melissa, e outros adjetivos, alguns pouco elogiosos, mesmo assim muitas vezes incorporados pelas próprias. Felizmente um personagem de novela resgatou a mulher trabalhadora, sobrevivente, chefe de família, que faz jus a grande e brava maioria das brasileiras.
Não é um fenômeno particular da mulher experimentar e se encaixar em posições sociais novas. Homens e toda população do Brasil passa pelo mesmo processo. É outro Brasil, é outro mundo, outro planeta. Mas, mesmo sendo um país rico, a 6ª economia do mundo, o número de mulheres pedalando continua baixo, mas crescendo rapidamente - felizmente. Infelizmente a maioria destes processos se deu apoiado numa precariedade trágica de cultura e educação, na de falta de exemplos, de uma elite paupérrima em princípios. Continuamos sem uma bicicleta básica e popular com perfil próprio para o perfil da mulher média brasileira. Quem sabe um dia a dona da SUV possa encontrar com facilidade uma bicicleta que lhe permita pedalar sem sujar sua chique roupa.

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