sábado, 24 de dezembro de 2011

Feliz Natal, Cidade Natal

O preto velho cruza por trás do povo que assiste distinto o coro de músicas natalino que se concentra nos degraus da Catedral da Sé e pára na beira da rua. Tem os cabelos e barbas completamente brancos, desgrenhados pelo forte vento da chuva que vê vindo. Veste sobre seu velho e surrado terno um casaco de Papai Noel muito bem cuidado, vermelho intenso, gola branca impecável. Começa os primeiros pingos e a multidão foge para se proteger e se apinha do outro lado da rua debaixo de marquises, bares e cafés abertos. O preto velho permanece ali impassível, como se soubesse que aquela chuva não seria capaz de parar os acordes delicados do coral. Terminam uma música e o quase só se ouve o aplauso do solitário preto velho que sorri e aproveita o espaço dos que correram para se aproximar do coral e da escadaria. O maestro gira o pescoço, olha para os lados, vê nuvens passando rapidamente e o azul tomando o início de noite de verão. Olha para o coral feliz. Todos passaram pelo aperto dos maus tempos e lá permaneceram afinados. Olha para trás para agradecer o aplauso efusivo e dá com o Papai Noel preto de olhos e dentes intensos de alegria. Enquanto volta a cabeça para o coral percebe que os fugitivos estão aos poucos voltando. Umas últimas gotas caem sobre a partitura, sem mexer a cabeça ele lança um olhar para os céus e levanta os braços. “Dóóóó....”. Pára as mãos abertas para frente, aponta os tenores, move os lábios “um, dois, três” e a nova música vem num crescente de trás para frente, enche os pulmões e todos degraus sobrepõe vozes delicadas para formar o louvor.

As luzes da cidade começam acender. Pouco depois os holofotes amarelados da Catedral batem na fachada e contrastam com o cada minuto mais azul do céu com suas últimas nuvens apressadas. Entre a multidão e coral está o Papai Noel. Termina a música, mais aplausos, que aos poucos vão silenciando. O maestro virasse e agradece. Aponta o coral. E percebe um cantar suave, barítono cheio e preciso, mas baixo, bem baixinho, entusiasmo puro. “Estrela brasileira”, pesca o maestro, que percebe pelo sorriso envergonhado que a voz é do preto velho Papai Noel. Dá um sorriso de aprovação, volta-se para o coral e faz as últimas músicas da noite quase sem parada.

O povo já se espalhou feliz pela paz do silêncio da praça. O preto velho continua lá. O coral festeja nas escadarias junto com o maestro. O preto velho quieto e sorridente segue olhando. “Deve estar bêbado. Deixa para lá”; mas maestro e duas cantoras descem as escadas. O preto velho esconde os dentes, mas mantém o sorriso e brilho dos olhos. “O senhor gostou?” E a resposta veio muito positiva dos olhos tímidos. A roupa de Papai Noel impressiona pela beleza. E o preto velho pela magreza sob o terno surrado, mas bem cuidado. “O senhor canta bem. Ouvido de maestro pega tudo. Já contou?” “Só para meus filhos. E hoje para os netos. Mas me desculpem, mas tenho que ir andando para chegar em casa.” E sem saber porque o maestro pergunta “Onde o senhor mora?” O preto velho, um tanto envergonhado, continua sorrido, olha o infinito, e depois de um breve silêncio responde: “Umas 3 horas caminhando”.

Um pouco a frente o coral cerca o preto velho Papai Noel. “Vamos todos de bonde. Vamos acompanhar o senhor. Pode ser?”. “Meu filho; moro num canto muito simples, vocês não vão querer ver...”. E quando se dá conta já está a caminho de casa, Papai Noel ao lado do motorneiro, coral balançando ao gosto dos trilhos, pontuado pelo sino das paradas. Numa delas pediram e ganharam o goro vermelho que faltava ao velho.

Dizem que ali nasceu uma nova cidade. Aquele coro voltou um pouco tarde para suas casas, mas foram recebidos sem ressalvas. Havia sido uma noite mágica e ninguém sabe até hoje quem era aquele senhor, para onde o acompanharam, onde exatamente ele morava. Mas todos do coral lembram que entraram pela viela naquele lugar muito simples, pobre mesmo, cantando. Atrás deles entrou um bumbo, e aos poucos a marcação era de samba. Na casa do preto velho ele pediu silêncio e cantou para os netos “Noite Feliz”, e acabada esta mandou que todos voltassem para suas casas. “Tem gente esperando vocês. Não cheguem tarde. Vão embora. Obrigado”.

A boa notícia correu; primeiro boca a boca, depois pela rádio, jornal e TV. O maestro repetia que entrar naquele local cantando foi o momento mais feliz de todo coral, e que as pessoas precisariam experimentar, não importa o lugar. E um dos repórteres pergunta se valeu a pena. “Vão! É um milagre. Há uma cidade lá fora que não conhecemos. Natal não é um presente. Natal, de ‘nascimento’, é uma dádiva. A cidade não é um presente, é dádiva. Vão em coro, vão juntos; mas vão! Peguem o bonde”. “E o Papai Noel preto velho?” - pergunta outro repórter? “Ele deve estar cuidado da família e da comunidade. Este é o espírito”.

Feliz Natal

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