quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A primeira pedalada


Numa rápida manha e alguns tombos adiante eu estava dominando a pequena bicicleta sem as rodinhas e sem freios. Pensando bem não sei como meu pai, sempre tão cuidadoso com as coisas técnicas, não se apercebeu que para parar aquela bicicleta a coisa era um pouco complicada. Fui autorizado a pedalar na calçada de minha rua, para lá e para cá. Nada de ir para a rua, para o asfalto, de cruzar a rua, de me afastar do portão. Não sei bem para que porque nunca havia ninguém olhando por mim. Não demorou muito para que começasse a fugir de casa e fazer coisas que me eram proibidas. Primeiro dobrei a esquina, depois dei minha primeira volta completa no quarteirão de dia e, não demorou muito e ainda posso me lembrar com detalhes, a mágica volta no mesmo quarteirão iluminada pela luz de um incrível farolete-buzina movido a pilhas. Não sei como não cai ou acertei uma árvore ou poste porque fiz a volta completa com olhos grudados no farolete. Terminada minha excursão parei no portão e como ninguém me notasse sai para outras muitas voltas. Quando cansei entrei em casa em silêncio, mas seguramente com cara de criminoso bem sucedido. Aos poucos fui indo mais longe, explorando todas calçadas do bairro, até o dia que acertei a porta de um carro que saía da garagem rua Polônia. Voei por cima do capô, tive que espaçar do motorista e moradores da casa que queria a todo custo me levar de volta para casa e voltei apavorado, pedalando amuado, com a certeza que minhas peripécias seriam descobertas e eu tomaria mais uma surra.
Provavelmente não me passou pela mais remota imaginação que tirar uma foto com a pequena bicicleta com seu garfo torto iria denunciar-me à eternidade. Talvez desde aquela época eu já tenha sacado que divertido mesmo é pedalar de chapéu cowboy, mas não tão divertido é voar por sobre o cavalo de ferro, a bicicleta.
Nunca soube ao certo se foi influência das aulas que meu pai me deu, ou pela falta de freio da pequena bicicleta, mas pedalar devagar nunca foi meu forte. Subia na bicicleta e voava para a liberdade. E com isto os tombos se sucederam pela vida. Quem voa toma tem suas quedas; faz parte. Os que caí em cercas de espinhos foram os mais marcantes. Podem imaginar quão divertido minha mãe achava ficar sentada retirando os espinhos do meu corpo. Eu tratava de não reclamar para não piorar as coisas. “Meu filho!” dito uma única vez, de forma dolorida, era o único que ela dizia. O que a gente faz mãe sofrer é vergonhoso, mas fazer o que?
Num determinado momento a bicicleta sumiu de minha vida. Sim, agora me lembro porque: em um dia claro, na hora do almoço, a porta de aço da garagem foi silenciosamente aberta e as duas bicicletas, minha e de minha irmã, foram levadas. A história toda é absurda porque esta porta era daquelas onduladas, típicas de lojas, padarias, e outros, que você puxa para cima para abrir e no enrolar acabam fazendo uma barulheira infernal. Não se ouviu nada, mesmo a janela da cozinha sendo há uns poucos metros. A imagem de nós, duas crianças desoladas, olhando para dentro da garagem vazia ainda entristece.
Só voltei a ter minha bicicleta alguns anos depois. Fui chamado por minha avó até a garagem dela e lá puxaram para cima o mesmo tipo de porta, com o mesmo barulho de enrolar que tínhamos em nossa velha casa, vi o sol progressivamente invadir o fundo da garagem e lá, encostada na parede havia uma bicicleta um tanto empoeirada. Não me dei conta do que se tratava. A bicicleta era meu presente atrasado, proibido de ser entregue no momento correto, aniversário ou Natal, por meu pai que dizia ali, ao meu lado, que eu não a merecia. Ela estava não só empoeirada, mas um pouco enferrujada, apesar de nova, de nunca ter sido rodada. Mas que pré-adolescente se preocupa com estes detalhes. Rodei muito com ela. Fiz coisas que não me lembro, mas que Renata, minha prima, conta rindo. Um dia, de boa fé deixei-a na porta do supermercado e não a vi mais. O segundo roubo.
Santo irmão não deveria servir para isto, mas fazer o que. Um dia ele, justamente ele, o bom homem sério grudado aos livros e ao trabalho, foi até a Sears e comprou uma bicicleta para si próprio. Talvez ele tenha esquecido de olhar que o moleque da casa já tinha sua altura. Saiu para dar sua primeira volta pelo bairro, voltou logo em seguida e contou o que havia feito. É lógico que pedi autorização, assim como é lógico que aos poucos me apoderando a bicicleta. Nem tanto, porque depois de alguns meses juntei dinheiro e comprei uma igual, mas com três marchas. Infelizmente não me lembro de termos saído para pedalar juntos, o que teria sido fantástico. A partir daquelas duas bicicletas encontrei meu caminho, este que quem me conhece sabe bem qual é. Mesmo depois que tirei carta a bicicleta não desapareceria mais de minha vida.
O tempo seguiu seu caminho e passei a titio. Confesso que não sei se ela sabe pedalar. Que vergonha! E a família parou por ai, uma sobrinha, e agora uma sobrinha neta. Hora de corrigir o erro.
Há mais de cinco anos venho ensinando quem não consegue pedalar a se virar. Uns ficam felizes porque pedalaram algum dia em suas vidas, outros pedalam por ai com a proteção divina (como a maioria dos ciclistas) e até tive o prazer de ter alunos que hoje pedalam com “P” maiúsculo. Não tive filhos biológicos, mas todos estes meus alunos são intimamente meus filhos. Sempre senti a coisa assim. E neste último dia dos pais um aluno, Sérgio, me mandou uma mensagem “Feliz Dia dos Pais”, que quase me fez enfartar de felicidade. É muito bom. Li o brevíssimo e adorável texto, olhei para meus três pequenos netos enteados e tive um acesso de ansiedade. Não vejo a hora de cada um deles chegue. E pelas costas do futuro ciclista sentirei um prazer indescritível. Ali é pode ser o começo do caminho para a liberdade, se assim eles quiserem.

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